quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Chuva Molha Parvos

Chuva molha parvos. Estou molhado. Farda e bota e capacete e espingarda: tudo molhado. Chuva molha tudo. Os ossos molhados. Provavelmente já nem corre sangue. Tudo água. Um orvalho que se estende em todo o acampamento: grupo de gotículas suspensas que se denunciam com as lanternas. Perpétuo duche neste país. Dizem que nesta terra morre-se de sede, e eu sem perceber se estão a mangar comigo. Faço vigia e de quando em quando estatelo-me no chão: farda cor de lama. Pareço uma poia gigante.

Li algures sobre as monções. Chove ininterruptamente há semanas. Será isto a monção? Sei que adoeço, mas não sei do quê. São demasiadas noites em vigias chuvosas, e a roupa sem tempo para secar. Mandaram-nos para este país. Nada explicaram. 
- Guerra, nação, patriotas que morreram, orgulho...
Propaganda por todo o lado: televisão, rádio, cartazes, comícios, feiras, escolas, igrejas. Os pobres desconfiam. Nada nos explicam. A malta relutante. Temos de defender interesses de meia dúzia. Quem nos defende dos interesses dessa meia dúzia? A malta relutante não se convence. O pároco bateu-nos à porta:
- é preciso lutar contra a imoralidade estrangeira!
E a malta ainda assim não se comoveu. O latifundiário apareceu-nos à janela:
- é preciso defender o nosso direito à propriedade!
E a malta escarneceu. A polícia invadiu-nos o quarto, de arma apontada aos filhos, mulheres, pais:
- é preciso dizer mais alguma coisa?

Chuva molha parvos. Há dias que a louvo. Farda e bota e capacete e espingarda: tudo molhado. Os olhos molhados. É chuva e lágrima que se misturam. Na primeira semana neste país, plano de assalto a acampamento inimigo. Fomos alertados sobre a força hostil: violentos, armas de fogo com treino avançado, sem misercódia. Estávamos todos acagaçados. Íamos comprimidos nos camiões militares. Uns choravam. Outros choravam. Fulano, sicrano e beltrano. Todos choravam. Alguns rezavam. Estávamos fodidos. Quando já se distinguiam disparos, granadas, gritos, o nosso camião travou. Saltámos porta fora, cegos e desvairados. Já só disparávamos e disparávamos e disparávamos. 

A violência bruta prende a memória: todos nós amnésicos. Uma sensação que a força hostil organizada em crianças, mulheres e velhos, em pedras e em paus, em desespero, em joelhos que pedem clemência. Uma sensação de ver o tenente:
- depois de mortos enterrá-los
E uma sensação de cavar uma vala comum, entorpecido, incrédulo, caquéctico.

Chuva molha parvos. E eu sem saber se sou parvo. Faço destas vigias uma viagem a casa, sem saber como lá ficar, sem saber como fugir disto. E a farda e bota e capacete e espingarda: tudo molhado. Apetece proteger-me junto a um barracão. Apetece fumar um bocado. Não tarda muito, alguém vem render a vigia. E junto ao barracão, já não chove. Já me sinto menos parvo. A farda ainda cor de lama. Sou uma poia gigante.

Imagem retirada daqui

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