quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Venho à Varanda Com Um Cigarro na Boca

Venho à varanda. Há Sol que se reflecte no branco da cidade: turva a exactidão dos pormenores, uma espécie de sonho que paira na luz das coisas. Há uma paz que emana do silêncio, é estranho, o dia em pleno auge e toda uma cidade que levita num sono quieto. Venho à varanda com um cigarro na boca. Preciso de espaço, de silêncio, de fuga, vou à varanda com um cigarro na boca,
- vou à varanda
tal como
- vou fumar
mas não só
- vou fumar
mas sim
- preciso de silêncio
Venho à varanda, e uma cidade em suspenso sob o Sol, sem vivalma na rua. Não há brisa. As árvores quietas, os carros quietos, os pombos quietos. Vou à varanda e não há cidade: uma gigantesca fotografia. Vou fumar, em frente uma gigantesca fotografia, gestos controlados, a beata que pode incendiar a cidade.
Cigarro na boca, um pretexto. Não a suporto mais. Preciso de espaço. Preciso esquecê-la, afastá-la, desprezá-la.
Odeio-a.
Vou à varanda e é um todo de alívio. Vou à varanda e é um cigarro na boca e um desprezo nas vísceras. Vou à varanda contemplar a fotografia. Há Sol que alaga claridade nos blocos brancos que sobrepostos fazem uma cidade, e lembro-me de um Sol que esverdeava o verde da relva, e de um vento que inquietava os ramos dos pomares, e dos pardais que enchiam o ar de missangas musicais. Lembro-me de um Sol que cobria a silhueta da minha mãe, e esta dobrada sobre o cesto de piquenique, e os meus irmãos de rédea solta sobre montes, colinas e encostas, e o cão enlouquecido com as correrias e desvarios alheios, e uma bicicleta numa distância lenta, perdida no tempo, sem significado. Lembro-me das sandochas, queijo, fiambre, folha de alface, e da limonada, e das cerejas, e dos pêssegos, e a minha mãe enrolada sobre um romance, e eu e os meus irmãos a investigar um ouriço-cacheiro, e o cão a expandir território na teimosia da bexiga, e o cigarro a trazer-me à varanda, à fotografia, ao desprezo, e à
(estúpida)
namorada que me ocupa a paciência, que não desaparece, que não se cala, que não se enxerga, e juro que estou farto, estou cansado desta relação, deste compromisso, desta promessa, e só não lhe abro a porta porque ela tem
(dinheiro)
este amor descontrolado, esta paixão desmedida, e não é má pessoa, é
(estúpida e tem dinheiro)
uma infeliz, e a sério que tenho pena dela, mas quero silêncio e espaço e tenho esta varanda, este cigarro, esta fotografia, este Sol que me faz lembrar a infância, e o piquenique, e a minha mãe em paz, e o meu pai longínquo a descascar cortiça no intervalo da pobreza, e eu finalmente feliz, e os meus irmãos a explorarem a flora, a fauna e a natureza, e o cão a dar-se a conhecer às lebres, e lá bem ao fundo a bicicleta a surgir sem prenúncio, quase existente, quase miragem, e eu verdadeiramente feliz, porque éramos pobres, e a vida era um cinto que nos apertava o estômago, e o meu pai a dar-se aos sobreiros, e por fim uma folga na escassez, e tivemos sandochas, queijo, fiambre, folha de alface, e limonada, e cerejas, e pêssegos, e a
(estúpida)
namorada que nasceu a cagar dinheiro, jóias e banquetes, que diz que leu Marx, que percebe, que entende, mas que só fala e fala e fala, e eu todo cheio de desprezo, e eu que levo o cigarro à boca,
- vou à varanda
tal como
- vou fumar
mas não só
- vou fumar
mas sim
- preciso de silêncio
mas também
- foda-se cala-te odeio-te
e juro que me apetece apontar-lhe a porta, abrir-lhe a porta, escancarar-lhe a porta, mas não o faço porque ela é
(podre de rica)
boa pessoa, e gosta de mim, e faz tudo por mim, e eu tenho pena dela, e vou à varanda, gestos controlados, a beata pode incendiar a fotografia, aliás, a cidade, e o Sol, sempre carregado de memória, leva-me para o prado, o piquenique, a minha mãe, os meus irmãos, o cão, as aragens quentes, o restolhar dos pomares, o pescoço esticado da lebre que nos espia, a bicicleta que descobre as curvas da vereda, os pardais e os diamantes chilreados, e lembro-me de estar inclinado sobre um formigueiro, e as formigas estúpidas, e eu que as depreciava, achá-las inferiores, achar o trabalho colectivo uma idiotice, e a monarquia uma justiça histórica, e a formiga escrava que tudo oferece à rainha, e a namorada estúpida que tudo me oferece, e eu a desprezá-la como desprezava as formigas, e lembro-me de as esmagar com o polegar, e a minha mãe de olhos tristes, a dizer tudo sem dizer nada, e para quê palavras, só olhos tristes, e os meus irmãos a concordarem, e eu também triste, duas lágrimas gordas, arrependido, a corrigir, a lamentar cada uma das formigas, e a minha mãe a dar consolo, e os meus irmãos que me abraçaram, e nisto a bicicleta tombada ao nosso lado, o senhor António zangado, ou miserável, a tropeçar, pernas bambas, quase a correr, uma pressa estranha, e lembro-me que abriu a boca e de lá saíram palavras, e para quê palavras
- foda-se cala-te odeio-te
e seriam palavras zangadas, ou miseráveis, ou outra coisa qualquer, e o senhor António a explicar, o meu pai caído, pescoço partido, morto, e a minha mãe tombava de joelhos, e havia vazio no semblante, uma dor sem palavras, e os meus irmãos agarrados ao desespero, de lágrimas em tempestade, e eu nada, e eu não triste pelo meu pai, não triste pela minha mãe, não triste pelos meus irmãos, mas triste por mim, triste pelo piquenique que acabou, e juro que por mim ficávamos ainda, e tenho a sensação que havia uma sandocha por comer, e não percebo, que interesse tem o meu pai, e o Sol a lembrar-me que eu estava feliz, é tudo o que importa, só tínhamos de fingir que não havia morto, continuar o piquenique, e depois percebi que nada havia a fazer, e que nesse dia deixei de ser menino, e que me levantei, de cigarro na boca, de frente para o pomar, e já não havia pardais nem havia chilrear, não havia lebres, não havia brisa, nem ramagens que se abanassem, já só havia silêncio e uma natureza quieta, já não havia prado.
Deixei de ser menino, de cigarro na boca, e onde havia prado passei a contemplar uma gigantesca fotografia.

Imagem retirada daqui

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