quarta-feira, 30 de abril de 2014

Esplanada ao Vento

E é como estarmos numa esplanada e um vento que amotina o arranjo das mesas, da mesma forma que as noites agitam as ideias e os sonhos dão lugar aos pesadelos portanto as insónias são como ilhargas dos loucos sabor de lírios no canto do espírito e aquele apêndice do cigarro que não acerta no cinzeiro porque o cinzeiro de lá para cá conforme a mesa que de lá para cá se move aos abanões, e se esticamos o braço para agarrar a volubilidade das coisas, é como grãos de areia que escorregam nos interstícios das mãos
(e não há nada que consiga manter na palma?)
E é como estarmos numa esplanada e os pombos, irreverentes, procuram sobras esfareladas, consoante os vazios da vida perscrutam na memória sobejos da infância com aquele desespero de quem tudo jogou na roleta, e quando metemos aquelas últimas moedas a apostar tudo no vermelho vemos, num fragmento de tempo, todo um futuro pintado de esperança, e noutro fragmento de tempo olhos que reflectem noutros olhos da mesma forma que as ausências são espelhos do nosso abandono, visto que e noutro fragmento de tempo há aquele aperto no peito
- queres ver que fiz merda
e a bolinha branca às voltas na roda, lembrando-nos o dia em que ficámos a ver a jante do carro que luzia memória dos verões adolescentes, e tudo começou numa brincadeira de miúdos, um empurrão
- queres ver que fiz merda
E é como estarmos numa esplanada e saborearmos aquele silêncio que não precisa de diálogos, da mesma maneira que quando a roleta gira só se ouve aquele respirar suspenso, ou por outras palavras, a roleta gira sem que nada se consiga ouvir
(nada ouve porque nada quer ouvir)
Quando a jante deixou de girar, um baque que nos ecoa nas lembranças e uma mancha vermelha no pára-choques e quando as lágrimas se vestem de preto nos intervalos das inscrições em mármores, ficamos como que impelidos a regredir no silêncio e na culpa da mesma cor que o vermelho da aposta, e a bolinha branca às voltas na roda até começar a saltitar sobre os números, como quando o coração começa a saltitar na esplanada porque levámos as nossas mãos ao encontro do toque
- queres ver que fiz merda
E é quando a ansiedade toma conta do nosso juízo e percebemos que temos a boca seca
(a sua depressão deixa-o com a boca seca)
E todo aquele verão maculado com o funeral, e quem nos dera afirmar, com a certeza absoluta, que foi só aquele verão maculado, porque a nossa convicção é acreditar que foi uma vida inteira maculada com o funeral, e tudo o que nós trouxemos na memória resume-se a lágrimas de mãe e um vaso de lírios sobre a campa, da mesma forma que sobrou da roleta uma negritude que nos levou a esperança, conforme a solidão que nos ocupou a esplanada, como quando fechamos o punho, grãos de areia escorregam pelos interstícios das nossas mãos.

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