terça-feira, 6 de maio de 2014

Sr. João [conto?]

O senhor João ultrapassou-me a passo rápido quando me falou. Olá Bruno, vou apanhar o comboio senão chego demasiado tarde. Nunca o vira a andar tão depressa. Nem quando o via quase diariamente a encaminhar-se até às putas do Cais Sodré que por uns tempos lhe foderam as poupanças de uma vida. O comboio quase a chegar. A sua respiração estava ofegante mas não era do ritmo da passada.

... A minha mulher desta vez não se safa!

Travou o passo. O sr. João nunca antes fizera conversa comigo tão prolongadamente. A sua necessidade de falar com alguém era tão grande que se arriscou a perder o último comboio até ao último folgo de sua mulher. A minha passada é larga e rápida, mas senti que não era suficiente. Ele seguia a pouco mais de meio metro de mim. Para trás olhava-me enquanto falava. Pedia por reciprocidade no meu olhar. O comboio já deveria ter passado e nós ainda longe. Acelerei, temendo que fosse em demasia, que a velocidade desarticulasse a curta passada do sr. João até ao chão, e que ainda fosse vê-lo a levantar-se em lágrimas por uma mulher que há muitos anos se saturara e lhe era insuportável.

... Ela ontem sentiu-se mal. As visitas são agora até às 13h00.

Nunca vi o sr. João caminhando lado a lado com a mulher. Fugia à frente dela. Distância de muitos metros. Sempre. Mas nunca numa passada tão rápida como a desta passada que vos conto. Era uma passada sôfrega, não pelo ritmo, mas pela emoção de uma última vez. Atenção sr. João que acho que o comboio já deveria ter chegado. Mas ele continuou a pouco mais de meio metro de mim. Ao meu ritmo. Meio a fugir. Meio a ficar. Distância bem mais tolerante que a que tinha à sua mulher.

... A minha mulher desta vez não se safa!

Felizmente que os comboios na Linha de Cascais avariam com frequência e uns tantos chegam atrasados. O sr. João chegou a tempo. Despedi-me sem lhe dar esperanças. Eu sabia que ela desta vez ia morrer.

Dias depois cruzo-me com o sr. João em ritmo que lhe é o normal. Falou-me sem travar o passo. Cumprimentou-me, apenas isso. Metros mais à frente surge-me a mulher do sr. João. Fiquei admirado. Perguntou-me coisas. Ela sempre perguntava coisas. Muito coscuvilheira. Por isso toda a vida fugi dela. Desta vez respondi. A um morto nada se recusa.

A idade deles é incerta. O desgaste que a fábrica lhes causara não me permite determina-la. Já não sou do tempo em que havia indústria junto à Linha de Cascais. Ou se calhar fui. O sr. João e a mulher só se reformaram anos depois de ela ter partido a perna no trabalho. Lembro-me disso. Talvez tenham recebido uma indemnização aquando do fecho da fábrica. Se calhar foi esse o dinheiro das poupanças que o sr. João fodeu nos braços do Cais Sodré.

Morreu ontem à tarde depois do almoço. Matou-se ao ir zonza com a cabeça a uma esquina por causa da quimioterapia. Os músculos contorceram-lhe o corpo. O sr. João agarrou-a e abraçou-a. Telefonou para o filho. Para a filha. Mas o dia que parecia igual a qualquer outro foi mais rápido que ambos e quando chegaram a mãe passara a ser uma carcaça fria. O sr. João, desesperado. A mulher pela primeira vez fugiu-lhe à frente. E não perguntou nada.

O velório foi hoje. O sr. João, desesperado. Em breve haverá outro. Desta vez é ele que não se safa. Pela primeira vez a sua mulher lhe fugiu à frente. E ele acelerou o passo. Os filhos ainda não perceberam. Vão voltar a chegar tarde. Mãe e Pai. Carcaças. Já só há tarde demais. Os corpos dos pais há muito que já estão frios.

Sem comentários: